"Quem não conhece Deus, mesmo podendo ter muitas esperanças, no fundo está sem esperança, sem a grande esperança que sustenta toda a vida" (Spe Salvi - Bento XVI)

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A responsabilidade dos educadores nos dias de hoje

Tradução (não-oficial) da Aula Magna (Lectio Magistralis) do Cardeal Cafarra, arcebispo de Bologna, por ocasião da abertura do Ano Acadêmico na Universidade Lateranense – Itália. Original em italiano disponível no blog degli amici di papa Ratzinger. 


Saudações (...)

O tema que abordarei, não digo “tratar” mas simplesmente “esboçar”, está na mais ampla problemática da questão educativa, um dos temas mais dramaticamente urgentes e essenciais. Vos falarei, com efeito, da responsabilidade dos educadores, hoje. 

Permitam-me iniciar com uma constatação elementar. O agir educativo põe o educador em diálogo com uma outra pessoa humana: a pessoa que pede para ser educada. Então, o educador é responsável, no modo que veremos, por uma pessoa humana. 

A responsabilidade que o educador tem por uma pessoa exige que ele se confronte de modo justo com ela; de modo justo, isto é, adequado à sua natureza de pessoa humana, proporcional à sua dignidade e valores. 

Assim, individuamos já um significado não secundário da responsabilidade do educador. Ele é colocado pelo seu agir em relação com uma pessoa humana e então é responsável por ela. 

Chegando a este ponto da nossa reflexão, a pergunta que surge em nós é a seguinte: de que forma, isto é, com qual ação, ele deve se colocar em relação à pessoa a educar, para que possa fazê-lo no modo adequado à natureza da pessoa mesma? 

A resposta a esta pergunta exige de nós que descrevamos a ação educativa como tal. 

Sei bem que entro em um campo no qual existem tantas doutrinas, inclusive contrárias entre si. Mas não quero adentrar-me em discussões doutrinárias. Não é nem mesmo a minha competência. Procederei de maneira muito mais simples, procurando ser o mais próximo possível da experiência. 

E partamos de uma questão: de que coisa precisa o homem para crescer na sua humanidade? 

A necessidade do homem tem um conteúdo muito vasto e variado, conforme às muitas dimensões da pessoa humana. 

Tem necessidade, em primeiro lugar, que lhe seja ensinado a guardar, defender, nutrir a vida biológica: existe um leque de necessidades que são do homem enquanto ser vivo. 

Em segundo lugar, o homem necessita que lhe seja ensinado não somente a viver, mas a conviver, pois a pessoa humana é constitucionalmente social. Neste campo de necessidades, entramos mais explicitamente em um modo de ser que revela a originalidade da pessoa: o conceito e a experiência de regras; o diálogo com o outro (estranho? Inimigo? Próximo?). A sociedade humana, na verdade, é essencialmente diferente do rebanho dos animais, pois é formada de duas grandes categorias espirituais (desconhecidas pelos animais): a justiça e a caridade. 

Tem necessidade, em terceiro lugar, que lhe sejam dadas respostas à sua necessidade de conhecer a realidade, à necessidade de felicidade. 

Em síntese: a pessoa humana precisa de: a) viver; b) conviver; c) desfrutar da verdade conhecida. 

A educação é a guia da pessoa; é ajuda dada à pessoa para que cresça ao ponto de ser ela mesma capaz de viver, de conviver, de conhecer e desfrutar da verdade conhecida. Querendo dizer a mesma coisa em termos quase banais: educar significa equipar a pessoa com tudo aquilo que é necessário para viver, para conviver, para conhecer e desfrutar da verdade conhecida. Esta é a responsabilidade do educador no confronto com a pessoa que há de ser educada. 

Com isso foi dito tudo sobre a responsabilidade do educador? Ou se se terminasse agora o nosso discurso, não se desviaria talvez de falar da verdadeira, da maior responsabilidade do educador? A cultura em que vivemos – direi depois o porquê – torna extremamente difícil a resposta. 

Faço uma constatação história e uma exemplificação... gramatical. A constatação histórica: existiu um homem grego e de conseqüência uma Paideia grega; existiu um homem romano e de conseqüência a institutio latina; existiu o homem do renascimento e, de conseqüência, uma coerente educação. E assim por diante. Existe, pois, um paradigma dos verbos em base ao qual vem conjugado qualquer verbo. O homem grego, o homem romano, o homem do renascimento tinham as mesmas necessidade das quais falamos antes – de viver, de conviver, de conhecer a verdade e desfrutá-la – e, deste ponto-de-vista não eram diferentes entre eles. Todavia, estas mesmas necessidades eram conjugadas, isto é pensadas e vividas segundo um “paradigma antropológico” bem diferente em cada uma das três exemplificações referidas. Se o “paradigma antropológico” muda, muda o modo de pensar e viver as necessidades fundamentais humanas. 

Por “paradigma antropológico” entendo uma imagem de homem, uma “forma viva” (R. Guardini) de homem tido como o verdadeiro homem. Não é simplesmente uma doutrina sobre o homem: esta vem por conseqüência, depois. A doutrina, realmente, é sempre abstrata e não toca o coração. 

Assim chegamos finalmente ao coração da responsabilidade do educador. Ele é responsável diante da pessoa a educar, de conduzi-la à realização de si segundo a forma viva da verdadeira humanidade. Dito em outros termos: ou o educador plasma quem lhe é confiado segundo aquela forma viva de homem que é tida como verdadeira ou não é um educador responsável. Ele não responderia à necessidade mais profunda de quem lhe foi confiado: a necessidade de ser verdadeiro homem; a necessidade de viver uma vida boa; a necessidade de viver alegremente. 

O drama atual da educação – o chamamos “emergência educativa” – é que não se admite que exista uma tal imagem do homem: o educador pode encontrar-se em um deserto antropológico e, então, contentar-se de permanecer dentro das necessidades. Ou, como se diz hoje: a educação termina simplesmente no Know-how; a equipar o homem dos instrumentos para viver. A educação não deve preocupar-se de transmitir um projeto de vida, tido como bom e verdadeiro. Mais, durante estas últimas décadas foi “deslegitimada” a concessão da responsabilidade do educador de mostrar a “forma viva” da verdadeira humanidade. A “deslegitimação” vem exibida como mais adequada ao sistema democrático, à condição de multiculturalismo em que vivemos, e ao dado de fato que nos encontramos dentro de um conflito de antropologia. 

Não posso, neste ponto, não reler com vocês, uma passagem do “Alcebíades Maior” de Platão, onde o tema é já claramente enunciado. 

Sócrates: Então, nunca poderíamos saber quais artes tornam melhores a si mesmos, enquanto ignoramos quem somos nós mesmos? 

Alcebíades: É impossível. 

Sócrates: Mas é talvez fácil conhecer-se a si mesmo e era um “fracote” aquele que colocou aquela inscrição sobre o templo de Delfi, ou se trata de uma coisa difícil e não ao alcance de todos? 

Alcebíades: Muitas vezes, Sócrates, me pareceu uma coisa ao alcance de todos e muitas vezes, pelo contrário, realmente difíceis. 

Sócrates: Todavia, Alcebíades, que seja fácil ou não, para nós a questão se põe assim: conhecendo a nós mesmos poderemos saber como devemos cuidar de nós, enquanto se ignoramos a nós mesmos, não o podemos saber

Antes de prosseguir, gostaria de refletir sobre o custo que tem uma redução da responsabilidade do educador ao simples know-how; qual preço exigiu e está exigindo. O digo servindo-me de uma expressão de R. Bodei: o preço pago é a destruição do “eu”. Quando digo “eu” entendo o núcleo substancial espiritual que constitui o proprium do ser pessoal, a verdadeira discriminação entre o humano e o não-humano. 

O eu se constitui no momento em que se age livremente. Num certo sentido, o eu nasce existencialmente na livre-escolha; é a livre-escolha o seu colo. 

Mas o exercício da liberdade humana entendida como liberdade de escolha – o percebemos rapidamente se prestamos um pouco de atenção a nós mesmos – pressupõe sempre um juízo sobre a bondade do que se está escolhendo. A liberdade implica sempre um referimento à verdade. 

Mas há qualquer coisa de mais profundo. Toda escolha, no fundo, é radicada em um desejo natural, que precede toda escolha porque é a condição de possibilidade: o desejo de beatitude, de uma plenitude do ser na qual a “ferida do coração” é definitivamente sanada. Em última análise, toda escolha é feita ou não é feita segundo a consideração de ser ou não ser resposta àquele desejo. Disto somos particularmente cônscios quando se trata de fazer a escolha do próprio estado de vida, por exemplo. 

Se é, todavia, verdade que somos como filetes de grama sedentos de felicidade; se é verdade que aquilo a que tende a nossa vontade como seu fim último é a felicidade, a determinação do bem cuja posse se acredita ser capaz de matar a nossa sede, depende das decisões de cada um, de cada particular. E é nisto que o homem se torna artífice do seu destino, se torna em sentido total um “eu”. A liberdade, no sentido mais profundo, é a capacidade que tem o “eu” de dispor de si mesmo em ordem àquele bem ou valor que acredita ser o mais importante. E é no exercício desta liberdade que a pessoa humana tem necessidade de encontro com o outro; procura ser iluminada, orientada. 

A vida se decide na resposta que a liberdade resolve dar à verdade última sobre si mesmo, sobre a realidade na sua inteireza. 

“Este referimento (o referimento das decisões livres à verdade) pertence à essência do decidir e, em particular, se manifesta na escolha. A razão essencial da escolha e da capacidade de escolher não pode ser outra que não o específico referimento à verdade” (K. Wojtyla, Persona e atto, Rusconi, Milano, 1999, 333). 

A refutação por parte do educador em propor uma visão, uma imagem viva do homem na sua integralidade, impede à pessoa de atingir a verdadeira riqueza da sua humanidade: o seu “eu”. Se limito a proposta educativa a um know-how, a um “equipamento técnico”, deixando de fora a razão e o propósito pelo qual irei colocar em prática a capacidade adquirida, excluo do diálogo educativo a pessoa no que tem de mais profundo. E, conseqüentemente, no momento em que – ao fim do diálogo educativo – deixo a pessoa que me foi confiada, a abandono em um tipo de “terra de ninguém” (as leis de ferro da economia, o desejo de poder, o reino do Id e da libido) na qual o “eu” fica como um fantasma dominado por forças primitivas” (M. Borghesi, o sujeito ausente. Educação e escola entre memória e niilismo, Itaca ed., Castel Bolognese 2006, 28). 

Expliquei, espero, em que sentido falo de “destruição do eu”, como preço a pagar quando se sustenta e pratica uma ação educativa que nega a responsabilidade do educador de transmitir uma imagem, uma forma viva de verdadeiro homem. 

Chegamos assim à afirmação maior sobre a responsabilidade do educador: o educador é responsável pelo nascimento de um “eu”, de uma pessoa. Isto é o que de maior existe no universo criado. De resto, há séculos a tradição cristã define a educação como uma continuada geração, a começar por São Paulo (cfr. 1 Tess 2, 7). 

Mas, o quanto eu disse parece contraditório: como se gera um “eu” na liberdade propondo-lhe uma visão da realidade, uma visão de si mesmo que é própria de quem o educa? Não é melhor que a responsabilidade do educador à transmissão do saber; do saber como viver e como conviver? Concretamente, a transmitir simples regras de comportamento, regras meramente formais, privadas de conteúdo. 

Esta dificuldade, hoje não incomum, é uma das raízes mais importantes do mal-estar educativo que estamos atravessando. Essa é uma conseqüência de um grave erro antropológico: pensar que a relação entre liberdade e pertença seja de proporção inversa. Maior liberdade quanto menor pertença, até pensar que a pessoa livre é a pessoa que não pertence a ninguém. 

Naturalmente não são negados – e como poderiam ser? – a pertença familiar, nacional, história, cultural. Todavia são considerados simples passagens psicológicas e emocionais em direção à verdadeira liberdade entendida como pura auto-determinação. Não posso, agora, parar para refletir longamente sobre esta temática, me limito a algumas observações mais pertinentes ao nosso tema. A escolha da liberdade não nasce do nada: do nada não nasce nada. Nasce do confronto entre a proposta de vida (que se funda sobre uma visão de mundo e do homem) feita pelo educador e a subjetividade da pessoa que se vai desenvolvendo, que se há de educar. O ato educativo não faz nascer um “eu” livre porque não propõe nada, mas porque propõe de modo que quem recebe tenha um terreno no qual apoiar-se e um referencial com o qual confrontar-se, uma hipótese interpretativa da realidade a verificar. E aqui descobrimos a raiz última da questão: a confiança na razão. 

Se partimos do pressuposto de que não existe uma verdade sobre o bem da pessoa; que não existe no homem um desejo inato de “saber como são as coisas”, mas somente de procurar o próprio bem privado e individual, sendo por conseqüência toda proposta de vida uma opinião não racionalmente condivisível, que direito tem o educador de propor ao educando a própria visão do mundo e do homem? Deixamos por um momento o âmbito da reflexão educativa para uma consideração mais geral. 

Se partimos da certeza que existe uma verdade sobre o bem da pessoa, que existe, por conseguinte, um bem comum entre as pessoas, a eventual controvérsia sobre as razões de convicções opostas, não se torna nunca uma controvérsia entre rivais. Se torna um encontro entre aliados na procura comum da verdade. 

Se, ao contrário, somos certos que tenha razão D. Hume quando escreve que não somos capazes de dar um passo além de nós mesmos (cfr. Opere filosofiche I, Trattato della natura umana, Laterza Roma – Bari 2002, 80), das duas, uma. Ou se impõe com a força o próprio ponto-de-vista (não necessariamente a força física) ou cada um vive em uma insuperável estranheza do outro. 

O relativismo é o hóspede mais inquietante e pesado na casa do educador, porque o conduz a gerar apátridas não só e não principalmente no sentido político. 

E aí? Existe um fato originário que está na raiz da possível deriva relativista da educação? Existe e é narrado em um verso virgiliano estupendo. Dirigindo-se a um neonato, o poeta lhe diz: “incipe, parve puer, risu cognoscere matrem” (Virgilio, Egloga IV, 60). A criança entra em um território que não conhece, no universo do ser que ignora. As perguntas fundamentais são duas: “que é aquilo que é?” (pergunta de verdade); “aquilo que é, me é hostil ou benevolente?” (pergunta de bem). Ela tem a resposta no modo com que a mãe sorri, isto é, o acolhe. O ser, o mundo é disponível ao acolher-me: a verdade do ser é o bem. Bento XVI continuar a repetir: a realidade é habitada pelo Logos; o Logos é Ágape. Quando este encontro originário com a realidade não acontece, sabemos bem quais conseqüências devastantes têm sobre toda a vida da pessoa. 

Um rosto indiferente, o rosto da esfinge não faz nascer um “eu” livre: “... risu cognoscere matrem”. 

Estamos pertos de descobrir uma dimensão dramática da responsabilidade do educador: o educador é responsável, é custódio da verdade do ser e da verdade sobre o bem da pessoa. É responsável pelo nascimento de um “eu”, não simplesmente livre, mas verdadeiramente livre porque livremente verdadeiro. 

Deveríamos agora finalmente, mas não dá, perguntar-nos qual é a modalidade através da qual o educador propõe sua visão do mundo, a sua proposta de vida. Todos, acredito, somos convictos de que não se pode reduzir a educação à instrução. Ao educador verdadeiro interessa sobretudo não que o educando aprenda algo, mas se torne alguém. De que forma? 

Fundamentalmente que o “alguém” que a ele é proposto se tornar, seja encarnado, e tome corpo no educador, e de modo fascinante. A modalidade própria da comunicação educativa é o testemunho do educador. 

O testemunho não é mero ensinamento, o qual como tal se dirige ao intelecto. O testemunho toca intimamente a pessoa: move o “eu” em direção à fonte profunda de onde flui o testemunho. 

Embora não se reduza a isso, o testemunho implica o exemplo. Quando o educador contradiz com o seu comportamento aquilo que propõe, normalmente a sua proposta não tem nenhum força. Agostinho não aprendeu a língua grega por causa do açoitamento que recebeu do seu primeiro professor daquela matéria. 

Isto não significa que ao educador não seja permitido falhar: é inumano pretender isto. Mas quando acontece, o reconhecer o erro é profundamente educativo. O reconhecimento testemunha nos fatos que a verdade da proposta feita é tal que exige que se tome posições a seu favor, até contra si mesmo. 

Isto pode causar um fascínio profundo sobre o educando. 

Descobrimos assim uma outra dimensão da responsabilidade do educador: é a responsabilidade de testemunhar a verdade sobre o bem da pessoa. Sócrates foi o primeiro grande educador no Ocidente porque contra o poder testemunhou a verdade sobre o bem da pessoa, até chegar à morte. 

Concluo. Caminhamos descobrindo uma a uma as várias dimensões da responsabilidade educativa, que me parecem principalmente três. O educador tem a responsabilidade pelo nascimento de um “eu” verdadeiramente livre e livremente verdadeiro; tem a responsabilidade de custodiar a verdade sobre o bem a pessoa; tem a responsabilidade de testemunhar a verdade sobre o bem do homem. 

Me pergunto, para concluir, há uma fonte oculta da qual brote continuamente estas três responsabilidades do educador? Em última análise existe uma experiência interior que guarde seguramente esta responsabilidade contra todos os poderes? (...) Existe. A descrevo com palavras de Romano Guardini: “A despeito de todas as regras tiradas da experiência, e dos fins e dos ordenamentos, ele deve – com sua íntima postura – sempre de novo retornar àquela sabedoria que não se exprime com afirmações como: ‘esta criança aqui, em meio aos outros cinquenta’, mas sim diz: ‘tu, criança; único no teu ser – de frente a mim’, quem não é capaz de agir assim, é um agricultor de indivíduos utilizáveis pelo Estado; é um adestrador de hábeis forças econômicas – mas não um verdadeiro educador de homens” (Etica, Morcelliana, Brescia, 2001, 895). E é só o amor que faz olhar o outro como “único no seu ser”: “a educação é um trabalho do coração” (São João Bosco). 

Agradeço pela atenção.

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