Uma das coisas
mais importantes e básicas para o processo de ensino é oque se expressa
perfeitamente com a conhecida expressão “começar pelo começo”. Dizer isso pode
parecer supérfluo por ser óbvio, mas,
infelizmente, nem sempre o óbvio tem
sido percebido e levado em consideração.
René Descartes,
em seu Discurso do Método, escreve
que se deve começar
pelos objetos mais
simples e os mais fáceis de serem conhecidos, para pouco a pouco subir, como
por degraus, até o conhecimento dos mais complexos[1].
Santo Tomás de
Aquino, nos primeiros parágrafos de sua obra O Ente e a Essência, a qual escreveu ainda em verdes anos, diz que
organizaria o conteúdo
Um professor que
não observe nem sequer essa premissa “óbvia e ululante”deixa de ajudar e passa
até mesmo a prejudicar a turma; sem exageros, podemos dizer que ele se converte
em um obstáculo para o progresso no conhecimento.
Em obstetrícia,
há um antigo adágio que diz que o bebê
nasce com o médico, sem o médico ou apesar do médico. Transportando esta
lição analogicamente da sala de parto para a sala de aula, podemos dizer que o bom aluno estuda com o professor, sem o
professor ou apesar do professor. Todavia, o desejável é termos sempre bons
médicos e bons professores para que os bebês nasçam com o auxílio dos primeiros
e os alunos aprendam com a ajuda dos últimos. Com efeito, é justamente
acreditando nos benefícios do serviço prestado por estes profissionais que as
pessoas procuram tanto uns quanto outros. Se soubéssemos de antemão que um
médico atrapalharia o parto e um professor dificultaria os estudos, não haveria
motivo para procurá-los. Pelo contrário, seria bom dar a eles a mesma advertência
que encontramos nas inscrições atrás das carretas: “MANTENHA DISTÂNCIA”.
Parece-me
perfeitamente compreensível que alguém tenha que ser um autodidata em muitas
situações, quando é impossível contar com a assistência de um mestre. Porém, é lamentável que, tendo um preceptor, o
aluno tenha ainda que ser autodidata no sentido mais largo do termo.
Recordo-me de
um professor que, no ano propedêutico[3],
deu-nos a ler um texto extremamente complexo bastante conhecido nos meios
acadêmicos. O título era Dialética da
Secularização e consistia num diálogo entre o filósofo Habermas e o Cardeal
Ratzinger. Naquela ocasião, nenhum de nós (alunos) sabia com segurança o
significado nem de dialética nem de secularização. Ouso dizer que até hoje
não sabemos bem! Para agravar a situação, a atitude de pesquisar nos
dicionários ou em quaisquer outras fontes está bem longe de ser um hábito
universal dos estudantes brasileiros e, naquela nossa turma, não era diferente.
De fato, embora tenhamos lido o texto completo e até participado de
“discussões” em sala de aula, a maioria terminou o ano sem ter entendido nem
sequer o título daquela obra.
De outra feita,
já no curso de Filosofia da Instituição em que fazemos faculdade[4],
um professor da disciplina de Introdução à Filosofia, ministrada no primeiro
período do curso, interrogou-me insistentemente (e também a outros) com a
seguinte questão:
“Em sua
opinião, o que está correto: a essência
precede a existência ou a existência
precede a essência?”
A possibilidade
de que alunos do primeiro período tenham conhecimentos suficientes para
responder a essa questão é mínima. Atrevo-me a dizer que mesmo a maioria dos
graduados não está apta a dar uma resposta satisfatória e bem fundamentada.
Pior ainda, muitos daqueles que estão nas cátedras universitárias, com
mestrado, doutorado ou sei lá que grau de pós-graduação, não responderiam senão
de maneira superficial, quando não falaciosa. Os conceitos de existência, essência e precedência
são complexos e assumem distintos sentidos na obra dos diferentes filósofos e
nos diversos contextos.
Além do mais,
entra aqui um problema de linguagem. As palavras existência, precedência e
essência fazem parte do vocabulário
corriqueiro de qualquer um de nós. Assim, quando ouvimos “precedência” pensamos
logo no sentido cronológico. Mas há também o sentido ontológico que é
importante na Filosofia, mas praticamente ausente na nossa comunicação diária.
Com a palavra essência a dificuldade
fica ainda mais nítida. Por exemplo, quem nunca ouviu dizer que um banheiro ou
uma sauna estão perfumados com essência
de eucalipto? Certamente não era este o sentido que Santo Tomás tinha em
mente quando usava o termo essência. Portanto, o professor tinha que explicitar
exatamente o que pretendia significar com essas palavras naquele dia. Não se
pode usar indiscriminadamente uma palavra com múltiplos significados.
Só para
completar o relato, pelo menos que eu tenha notícia, o referido professor não
deu jamais uma explicação satisfatória. Disse-nos que para os existencialistas
a existência precede a essência; para os tomistas, o inverso; e, para ele
mesmo, não há precedência alguma. Três possibilidades, todas elas obscuras para
nós e, possivelmente, para ele também.
Porém, o mais
importante para mim é o seguinte: para perceber a dificuldade desta questão (e
também de muitas outras), se faz necessário ter duas coisas, pelo menos: humildade e honestidade intelectual. Infelizmente, eu percebi serem (ambas)
qualidades incomuns nos alunos e nos professores. Assim, muitas vezes as
pessoas pensam (ou dizem) entender bem aquilo sobre o que não sabem quase nada.
Isto, de per se, constitui um
obstáculo enorme à busca do conhecimento.
Perceber que um assunto difícil é difícil é um dom. Parece uma coisa simples, mas tenho
notado que não é. E, na verdade, isso é praticamente uma condição sine qua non para o progresso de um
estudante dedicado e, mais ainda, para alguém que deseja ser filósofo!
O famoso “sei
que nada sei” de Sócrates não é uma mera confissão de ignorância, mas um sintoma
de um espírito verdadeiramente filosófico, que admite que não sabe aquilo que não sabe, o que tem muito a ver com perceber que é difícil um assunto
difícil.
(...) Dava-se o caso, com
efeito, que nem um nem outro de nós dois soubesse nada de bom nem de belo; mas
ele estava convicto de saber enquanto não sabia, e eu, ao contrário, como não
sabia, também não julgava saber.
De todo modo, pareceu-me ser
mais sábio do que esse homem, ao menos nesta pequena coisa, ou seja, pelo fato
de que aquilo que eu não sei, também não afirmo saber[5].
Outro
professor, no fim de uma aula, voltou-se para a turma com cara de lamentação e
falou nestes termos (escrevo as palavras exatas que ele usou):
“A
sabedoria que vem da filosofia é saber
que não sabe”.
À
primeira vista, parece muito com a expressão atribuída a Sócrates. Mas, no
fundo, quer dizer o contrário. Dizer que a sabedoria é “saber que não sabe” é como afirmar que nenhum conhecimento definitivo
é possível e, portanto, é afirmar o ceticismo.
Ao contrário,
dizer que “não sabe aquilo que realmente
não sabe” é tão somente ser intelectualmente honesto e humilde.
O não-saber socrático não é o ponto de
chegada do filósofo, mas o ponto de partida. Reconhecer que não sabe aquilo
que não sabe é o pré-requisito necessário para começar a estudar. Por outro
lado, pretender que o “não-saber” é o melhor resultado dos esforços filosóficos
é um ceticismo facilmente refutável. Afinal, a sentença “saber que não sabe” é
contraditória porque quem sabe que não sabe já sabe pelo menos de alguma coisa:
que não sabe. Pelo que li, parece que Pirro foi mais coerente que os atuais
céticos porque, acreditando que não se pode chegar a qualquer conhecimento
verdadeiro, ele também se negava a ensinar.
A
humildade e a honestidade intelectual são as duas colunas que devem sustentar
todos os esforços do bom aluno. São virtudes sem as quais não se pode pretender
ser um bom aluno e muito menos um bom professor e, ainda menos, um filósofo.
A
humildade abre as portas para o conhecimento verdadeiro, como Nosso Senhor
Jesus Cristo, fonte de toda sabedoria, deixou claro quando disse:
Eu te bendigo,
Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos
e as revelaste aos pequenos (Mt 11, 25)[6].
A parábola das casas construídas uma sobre a rocha e
outra sobre a areia, embora tenha sentido espiritual, também é aplicável aqui,
por analogia. Quem não se empenha em conhecer bem aquilo que é mais necessário
e elementar não pode avançar com segurança para os assuntos mais difíceis. E
quem não constrói sua vida intelectual sobre as virtudes da humildade e da
honestidade, não pode ser um estudante bem sucedido.
No caso do Evangelho, Jesus refere-se à Sua Palavra, que é a rocha firme
sobre a qual devemos edificar nossa vida. Também as bases sobre as quais
podemos construir a nossa vida acadêmica são os conhecimentos mais simples e
certos a partir dos quais podemos nos aventurar, com humildade e honestidade
intelectual, pelo mundo da ciência. As palavras de Nosso Salvador, como
registradas pelo Evangelista, são incomparavelmente belas e clarificadoras:
Aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as põe em prática é
semelhante a um homem prudente, que edificou sua casa sobre a rocha. Caiu a
chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa;
ela, porém, não caiu, porque estava edificada na rocha. Mas aquele que ouve as
minhas palavras e não as põe em prática é semelhante a um homem insensato, que
construiu sua casa na areia. Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos
e investiram contra aquela casa; ela caiu e grande foi a sua ruína (Mt 7,
24-27).
Muitos
ditados populares seguem uma lógica parecida: não se pode começar a construir uma casa pelo telhado; de grão em grão
é que a galinha enche o papo; não se deve por a carroça na frente dos bois.
Não
estou dizendo nada de extraordinário e nem tenho essa pretensão. Ao contrário, apenas tagarelo sobre aquilo que é óbvio
e que muitos outros já explicitaram com muito maior competência desde tempos antigos.
Por infortúnio, nossa época é de tal
modo estranha que, por vezes, se torna difícil notar aquilo que está bem diante
de nosso nariz. Estamos como aquele cego do Evangelho que, respondendo à
pergunta de Jesus (o qual lhe tinha passado saliva nos olhos) sobre o que
enxergava, disse que via os homens como se fossem árvores que andam (cf. Mc 8,
22-25).
[1]
Ibidem, p. 42.
[2]
TOMÁS DE AQUINO. O Ente e a Essência, 7ª edição. Vozes, 2005, p. 13.
[3]Em
muitas Dioceses, o ano propedêutico é preparatório para o ingresso no Seminário
Maior.
[4]Atualmente,
os seminaristas seculares de minha Diocese fazem o curso superior de Filosofia
em uma instituição fora dos muros do Seminário.
[5]
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Citado em REALE, G., ANTISERI, Dario. HISTÓRIA DA
FILOSOFIA. Vol. 1. Ed. Paulus, 4ª Ed., 2009,
p. 110.
[6]
A tradução da Bíblia usada em nossas citações é a da editora Ave-Maria.
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