"Quem não conhece Deus, mesmo podendo ter muitas esperanças, no fundo está sem esperança, sem a grande esperança que sustenta toda a vida" (Spe Salvi - Bento XVI)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Perícia Médica e Igreja católica

Abaixo, apresento um extrato de um trabalho de conclusão de curso em Perícia Médica que tive que fazer há pouco tempo. Está em formato diferente dos demais posts, mas vale a intenção. Paz e Bem da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

1 Introdução

            Surgida há cerca de dois milênios, a Igreja católica desenvolveu-se a partir do colégio dos doze apóstolos escolhidos por Jesus Cristo (1). Ao longo dos séculos, os cristãos estiveram presentes em todos os grandes momentos da história da civilização ocidental. Primeiro, sofrendo a perseguição dos imperadores romanos e fazendo subsistir a fé ao preço do próprio sangue, lutando até o martírio (2). Com o desmoronamento de Roma, que caiu nas mãos dos bárbaros, a Igreja foi, praticamente, a única instituição preservada e que conseguiu sobreviver aos ataques (3).
            Por esta razão, cada vez mais, cresceu a importância da Igreja católica enquanto instituição, com papel decisivo na manutenção da ordem social, na educação, na saúde, nas artes e na cultura.  Assim, não se pode desprezar a importância da Igreja para o desenvolvimento progressivo de todos os campos da razão e das ciências. Alguns historiadores chegam a afirmar com clareza que a Igreja moldou a civilização ocidental como hoje a conhecemos (4). 
Também a perícia médica, enquanto ciência, sofreu influência do pensamento dos clérigos e, de outro lado, esteve presente na história da Igreja em numerosas ocasiões. De maneira particular, a perícia médica era e ainda é de suma importância na identificação dos assim chamados “milagres”, ou seja, a Igreja recorre ao parecer de peritos para confirmar que uma determinada cura não pode ser explicada pelos conhecimentos científicos de momento. Isto está presente ainda hoje e com força em muitos santuários e locais de peregrinação em que as pessoas relatam curas extraordinárias, além de ser parte integrante nos processos de beatificação e canonização que correm na Sagrada Congregação para a Causa dos Santos, na Cidade do Vaticano (5).
            É de se lamentar que em muitos círculos acadêmicos seja propagada uma versão anticlericalista que apresenta a Igreja como uma instituição inimiga da razão, do progresso e dos conhecimentos gerais (6).
            O presente trabalho tem por objetivo apresentar de modo claro e sucinto o papel dos peritos médicos na Igreja católica, na atualidade. Não se pretende aqui fazer uma revisão histórica dos fatos e controvérsias que envolveram peritos médicos e a Igreja no passado, reservando apenas alguns pequenos comentários a este respeito. Na verdade, o foco deste estudo é a junta médica oficial da Sagrada Congregação para as Causas dos Santos e seu modo de atuar para a definição de um milagre ou sua refutação. Isto tem importância por ser a religião católica praticada por mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo, inclusive muitos médicos, e pelo respeito e credibilidade que os médicos peritos gozam junto à Igreja. Além disso, este trabalho médico-pericial é, para muitos, desconhecido e esta monografia pretende servir de apoio àqueles que desejarem conhecer o assunto de modo prático e seguro. 


2 Fé e razão no Magistério


            O encontro entre fé e razão tem origem em tempos muito remotos.  Já a interrogação de Tertuliano, nos primeiros séculos da era cristã, deixa clara questão: “Que têm em comum Atenas e Jerusalém? Ou, a Academia e a Igreja?” (De præscriptione hereticorum, VII, 9). É útil citar, a partir daqui, diversas intervenções do Magistério recente da Igreja católica sobre o tema do relacionamento entre fé e razão, no interesse de clarificar e estabelecer de modo bem definido as bases desta questão crucial para o tema que este trabalho propõe tratar. A espinha dorsal das citações que necessariamente se seguirão nas próximas linhas será a Carta Encíclica Fides et Ratio publicada pelo beato João Paulo II quando este ocupava a cátedra de São Pedro, em 1998 (7). Através deste pequeno compêndio de citações o autor deseja favorecer um melhor entendimento do leitor sem, no entanto, esgotar o tema e recomendando vivamente a leitura integral dos documentos pontifícios que serão citados.
            Já nas Sagradas Escrituras se encontram passagens que relatam a necessidade que os apóstolos tiveram de harmonizar a doutrina recebida a partir de Jesus Cristo com a razão natural. Sobre isso, escreve João Paulo II:
“Os Atos dos Apóstolos testemunham que o anúncio cristão se encontrou, desde os seus primórdios, com as correntes filosóficas do tempo. Lá se refere à discussão que S. Paulo teve com « alguns filósofos epicuristas e estóicos ». A análise exegética do discurso no Areópago evidenciou repetidas alusões a idéias populares, predominantemente de origem estóica. Certamente isso não se deu por acaso; os primeiros cristãos, para se fazerem compreender pelos pagãos, não podiam citar apenas « Moisés e os profetas » nos seus discursos, mas tinham de servir-se também do conhecimento natural de Deus e da voz da consciência moral de cada homem (cf. Rom 1, 19-21; 2, 14-15; Atos 14, 16-17). Como, porém, na religião pagã, esse conhecimento natural tinha degenerado em idolatria (cf. Rom 1, 21-32), o Apóstolo considerou mais prudente ligar o seu discurso ao pensamento dos filósofos, que desde o início tinham contraposto, aos mitos e cultos misteriosos, conceitos mais respeitosos da transcendência divina” (João Paulo II, Fides et Ratio, 1998).
            Por outro lado, esta aproximação entre a pregação cristã e a filosofia grega se deu com grande cautela. Sobre isso, já advertia o apóstolo Paulo: “Vede que ninguém vos engane com falsas e vãs filosofias, fundadas nas tradições humanas, nos elementos do mundo, e não em Cristo” (Atos dos apóstolos 2,8) (8).
            Com o passar do tempo, os assim chamados Pais da Igreja (ou Padres da Igreja) foram, lentamente, conseguindo cristianizar a filosofia ou fazendo o devido ajuste entre a razão humana e a fé recebida em Jesus Cristo.
“Uma razão purificada e reta era capaz de se elevar aos níveis mais elevados da reflexão, dando fundamento sólido à percepção do ser, do transcendente e do absoluto. Aqui mesmo se insere a novidade operada pelos Padres. Acolheram a razão na sua plena abertura ao absoluto e, nela, enxertaram a riqueza vinda da Revelação. O encontro não foi apenas questão de culturas, uma das quais talvez seduzida pelo fascínio da outra; mas verificou-se no íntimo da alma, e foi um encontro entre a criatura e o seu Criador. Ultrapassando o fim mesmo para o qual inconscientemente tendia por força da sua natureza, a razão pôde alcançar o sumo bem e a suma verdade na pessoa do Verbo encarnado. Ao encararem as filosofias, os Padres não tiveram medo de reconhecer tanto os elementos comuns como as diferenças que aquelas apresentavam relativamente à Revelação. A percepção das convergências não ofuscava neles o reconhecimento das diferenças” (João Paulo II, Fides et Ratio, 1998).
            Seguindo o curso de tempo através das linhas da Encíclica de João Paulo II, chega-se à Idade Média, ao pensamento escolástico de Santo Anselmo e Santo Tomás de Aquino. Mais uma vez, é fundamental voltar ao texto, onde se lê:           
“Santo Anselmo sublinha o fato de que o intelecto deve pôr-se à procura daquilo que ama: quanto mais ama, mais deseja conhecer. Quem vive para a verdade, tende para uma forma de conhecimento que se inflama num amor sempre maior por aquilo que conhece, embora admita que ainda não fizera tudo aquilo que estaria no seu desejo: « Ad te videndum factus sum; et nondum feci propter quod factus sum ». (42) Assim, o desejo da verdade impele a razão a ir sempre mais além; esta fica como que embevecida pela constatação de que a sua capacidade é sempre maior do que aquilo que alcança. Chegada aqui, porém, a razão é capaz de descobrir onde está o termo do seu caminho: « Penso efetivamente que, quem investiga uma coisa incompreensível, se deve contentar de chegar, pela razão, a reconhecer com a máxima certeza a sua existência real, embora não seja capaz de penetrar, pela inteligência, o seu modo de ser (...). Aliás, que há de tão incompreensível e inefável como aquilo que está acima de tudo? Portanto, se aquilo de cuja essência suprema discutimos até agora, ficou estabelecido sobre razões necessárias, ainda que a inteligência não o possa penetrar de forma a conseguir traduzi-lo em palavras claras, nem por isso vacila minimamente o fundamento da sua certeza. Com efeito, se uma reflexão anterior compreendeu de maneira racional que é incompreensível (rationabiliter comprehendit incomprehensibile esse) o modo como a sabedoria suprema sabe aquilo que fez (...), quem explicará como ela mesma se conhece e exprime, dado que sobre ela o homem nada ou quase nada pode saber? » (Santo Anselmo, monologion)” (João Paulo II, Fides et ratio, 1998). 

            Todos os argumentos desenvolvidos até aqui tem por finalidade ajudar o leitor a aproximar-se do entendimento católico acerca da verdade, do que seja o correto relacionamento entre fé e razão na busca incessante do homem pela verdade última sobre si mesmo e a respeito do mundo em que vive.
Esta harmonia entre fé e razão foi construída ao longo de muitos séculos, mas encontrou-se em sofrimento após o século XVI, com o surgimento das novas correntes filosóficas e teológicas. Aqui, vale ler um trecho de uma Encíclica do Papa Leão XIII, no século XIX:
“Debaixo dos impulsos dos inovadores do século XVI, principiou-se a filosofar sem respeito algum pela fé, com plena licença para deixar voar o pensamento segundo o capricho e critério de cada um. Resultou naturalmente que os sistemas de filosofia se multiplicam de modo extraordinário e que apareceram opiniões diversas e contraditórias até sobre os objetos mais importantes do conhecimento humano. Com a pluralidade de opiniões, chega-se facilmente à vacilação e à dúvida; da dúvida, porém, ao erro é facílimo ao conhecimento humano o chegar, como todos sabem.” (Leão XIII, Carta Encíclica Aeterni Patris, 1879).
            Este contexto de certa crise ou afastamento entre fé e razão só foi aumentando no decurso do tempo. Numa situação defensiva e precisando envidar esforços para responder de novo com a antiga eficácia aos questionamentos do mundo, a Igreja reuniu-se no Concílio Vaticano II. Convocado pelo Papa João XXIII, este Concílio, cujo aniversário de 50 anos comemora-se em 2012, lançou as bases para um novo tempo de diálogo e aproximação entre a fé e a razão. Tanto é que lemos no texto declaração conciliar Gaudium et Spes (Alegria e Esperança) (9):
“Ao contrário do que sucedia em tempos passados, negar Deus ou a religião, ou prescindir deles já não é um fato individual e insólito: hoje, com efeito, isso é muitas vezes apresentado como exigência do progresso científico ou dum novo tipo de humanismo. Em muitas regiões, tudo isto não é apenas afirmado no meio filosófico, mas invade em larga escala a literatura, a arte, a interpretação das ciências do homem e da história e até as próprias leis civis; o que provoca a desorientação de muitos”. (Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes,1965).
            É nesta situação atual bem documentada pelo texto dos padres conciliares há 50 anos que a humanidade ainda se encontra hoje. O Santo Padre Bento XVI tem se esforçado para levar adiante este diálogo imprescindível entre fé e razão numa tentativa de romper as barreiras que foram erguidas entre as duas nos últimos tempos. Para pôr fim a esta inicial exposição, vale citar um recentíssimo texto do Premio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, publicado pelo Jornal El País, da Espanha, alguns dias após a Jornada Mundial da Juventude, em Madrid (10):
“Bento XVI é um homem de idéias, um intelectual, alguém cujo espaço natural é a biblioteca, a sala de aulas da universidade, o auditório das conferências. A sua timidez diante das multidões aflora de modo invencível nessa maneira quase envergonhada e quase a pedir desculpas por ter de se dirigir às massas. Mas essa fragilidade é enganosa pois trata-se provavelmente do Papa mais culto e inteligente que a Igreja tem há muito tempo, um dos raros pontífices cujas encíclicas ou livros um agnóstico como eu pode ler sem bocejar (...). Crentes e não crentes devemos alegrar-nos por isso com o que aconteceu em Madrid nestes dias em que Deus parecia existir, o catolicismo parecia ser a religião única e verdadeira e todos, como bons rapazes, caminhávamos de mãos dadas com o Santo Padre em direção ao Reino dos Céus” (Llosa, M.V., 2011).



3  A Congregação para as causas dos Santos



Denomina-se de canonização o ato pela qual a Igreja declara que um determinado indivíduo praticou em sua vida terrena as virtudes em grau heróico e alcançou a santidade. Ou seja, a Igreja quando canoniza, declara que o indivíduo canonizado está no Céu e que pode interceder por nós diante de Deus (11).Em outros termos, a canonização é a sentença definitiva por meio da qual o Papa declara que algum servo de Deus está na glória dos céus e prescreve que, por esta razão, lhe seja prestada pública veneração (12). 
A tentativa de criar um organismo da Santa Sé para regular e estudar as Causas dos Santos iniciou-se há mais de quatrocentos anos. Em 1588, Sixto V, Papa, cria a Sagrada Congregação dos Ritos, que fica encarregada de regular do culto divino e estudar as causas dos Santos. Séculos mais tarde, o Paulo VI, através da constituição apostólica Sacra Rituum Congregatio, resolve dividir a congregação dos Ritos, dando origem a duas novas congregações: uma só para o Culto Divino e outra para as Causas dos Santos. Em 1983, houve uma profunda reforma no procedimento das causas de canonização e a Congregação foi toda reestruturada. Por fim, em 1988, o Papa João Paulo II fixa a denominação Congregação para as Causas dos Santos, por intermédio da Constituição Apostólica Pastor Bonus (13).
O papel dos médicos nos casos que envolvem milagres é marcante e a Santa Sé prestigia muito a atuação pericial destes profissionais. Tanto é verdade que a nova legislação relativa às causas dos Santos, dada pelo Papa João Paulo II, através da Constituição Apostólica Divinus Perfectionis Magister (14) menciona os médicos de maneira clara. É útil, novamente, para clarear os conceitos e facilitar o entendimento da argumentação e da legislação da Igreja em matéria de canonização, ler alguns trechos deste documento:

“(...) a Sé Apostólica, desde tempos imemoriais, pela importante missão que lhe foi confiada de ensinar, santificar e governar o Povo de Deus, propõe à imitação, veneração e invocação dos fiéis homens e mulheres que sobressaem pelo fulgor da caridade e das outras virtudes evangélicas, declarando-os Santos e Santas num ato solene de canonização, depois de ter realizado as investigações oportunas. A Instrução “Causarum canonizationis”, que o nosso predecessor Sixto V deu à Congregação dos Sagrados Ritos por ele fundada, foi-se desenvolvendo no decurso dos tempos com novas normas. (...) Por fim, depois das experiências recentes, pareceu-Nos oportuno rever o procedimento de instrução das causas e dar um ordenamento à referida Congregação para as Causas dos Santos, indo deste modo ao encontro das exigências dos estudiosos.” (João Paulo II, Divinus Perfectionis Magister , 1983)

E, depois de descrever como deve ser a instrução dos processos desde as primeiras fases até que chegue à apreciação da Congregação para as Causas dos Santos, finalmente, faz referência aos médicos, dizendo:

“Os presumíveis milagres, sobre os quais o Relator encarregado para o efeito prepara uma Positio, são examinados na reunião de peritos (no caso de curas, na reunião de médicos), cujos votos e conclusões serão expressos detalhadamente numa minuciosa relação.” (Ibidem)

Ainda sobre a instrução do processo, já nas fases inicias, o bispo diocesano deve nomear um médico perito para os casos em que há uma presumível cura miraculosa. O médico perito, então, presta juramento durante a Primeira Sessão do Inquérito, de que irá cumprir fielmente se encargo e manterá sigilo de ofício.
Ele participa, depois, em todas e cada uma das Sessões colaborando diretamente com o delegado episcopal, inclusive com a faculdade de sugerir perguntas específicas a fazer às testemunhas que sejam úteis para o aprofundamento do caso.
Se o perito considerar oportuno fazer perguntas a uma testemunha já examinada, ele pode. Neste caso, a testemunha é chamada novamente para depor. O médico perito, além disso, só pode faltar as Sessões se houver motivos graves, os quais serão registrados por escrito e juntados aos autos da relativa Sessão do Inquérito.
O médico perito deve, depois, preparar um relatório tendo em vista o exame do presumível milagre na Congregação para as Causas dos Santos. Neste relatório, ele deve emitir um juízo sobre a qualidade dos testemunhos médicos e técnicos. Depois, participarão do processo também os peritos do Vaticano, na sede da Congregação, em Roma (15).


 4 O papel dos médicos peritos na identificação dos milagres


            Convém, aqui, definir o que é milagre para, depois, verificar de que maneira os médicos colaboram com o seu trabalho pericial na identificação deles. Por milagre entendemos o acontecimento incomum e admirável que causa em algo uma alteração súbita que é inexplicável pelas leis da natureza, com indício de participação divina na vida humana (16).
            Como já mencionado exaustivamente nos parágrafos anteriores, a Congregação para a Causa dos Santos dispõe de um corpo médico pericial, conhecido como Consulta Médica (CM). A CM declara do ponto-de-vista científico a ocorrência de cura inexplicável após o que o processo passa as mãos de uma comissão teológica que deverá desenvolver um outro tipo de investigação para, finalmente, determinar a ocorrência ou não do milagre. O percurso até o juízo médico-pericial acerca de uma cura (se é inexplicável ou não) é complexo e detalhado porque a documentação apresentada é normalmente vasta (exames radiológicos, histopatológicos, pareceres, etc.) e requer competências específicas, tais como conhecimentos em cardiologia, neurologia e demais especialidades médicas. A conclusão da CM acontece somente depois que o caso é apresentado pelos médicos peritos e dos vários especialistas por ventura consultados até a chamada “discussão colegial” que não é outra coisa senão um debate entre os peritos sob a coordenação do presidente da Consulta Médica. O enorme desenvolvimento das ciências no vigésimo século da era cristã e ainda agora a pleno vapor torna sempre mais complexo o juízo sobre a inexplicabilidade (do italiano “inspiegabilità”) de uma cura (17).
            O diagnóstico deve ser sempre acreditado e subsidiado por provas diagnósticas necessárias e suficientes para chegar-se a um nível satisfatório de certeza. Os critérios de diagnóstico devem sempre reportar à época do ocorrido. Porém, a antiguidade dos casos, particularmente aqueles que de mais de vinte anos passados, dificulta a comprovação do milagre e o trabalho da junta médico-pericial, tanto no que concerne ao diagnóstico (no caso de doenças mal definidas segundo a ciência atual) quanto ao tratamento (17).
            Outra dificuldade freqüente é em relação aos diversos testemunhos disponíveis. Eles podem até mesmo se contradizer entre si e os médicos-peritos devem estar atentos à confiabilidade dos relatos, analisando critérios como exatidão das palavras, precisão de termos, tempo e circunstâncias, incluindo a independência das várias testemunhas. Mais ainda em quanto os que relatam a cura são o próprio doente curado ou seus familiares que podem estar sugestionados pela vontade mais ou menos inconsciente de ter participado diretamente em um evento extraordinário. Por isso, muito importante são os relatos dos médicos que assistiram o doente. (17). Tecnicamente, então, poderíamos afirmar que, na grande maioria das vezes, a perícia realizada é indireta, ou seja, baseia-se em informações trazidas seja pelos documentos dos autos, por pesquisa de campo ou por novos documentos (18).
<!--[if !vml]--><!--[endif]-->        Existe, então, uma larga experiência nos procedimentos médico-periciais na identificação dos milagres, especialmente na Congregação para a Causa dos Santos.  Atualmente, ocupa a chefia deste serviço na Santa Sé, o médico italiano Patrizio Polisca, que também é médico pessoal do Santo Padre Bento XVI (19).

4.1 Da possibilidade de erros na perícia médica nos processos de canonização
Evidentemente, passível de equívocos. Isto, de per se, gera a conseqüência de que a perícia não confere infalibilidade para a definição de milagres. É por essa razão que, nos processos de canonização, são levadas em conta ainda muitas outras coisas além da opinião dos médicos, como a avaliação de uma junta de teólogos que devem investigar o tipo de devoção de quem rezou pelo milagre, as virtudes da pessoa sobre quem se interroga a santidade, entre outras, além de, por fim, receber a aprovação do Romano Pontífice que assina, então, o decreto de canonização ou beatificação, dependendo do caso (para a canonização, via de regra, são necessários dois milagres).
Logo, mesmo nos tempos atuais, os processos de canonização ainda não deixam de causar polêmica, inclusive no orbi católico, havendo alguns teólogos que chegam a discutir a questão da infalibilidade nesses casos, não havendo para tanto juízo definitivo do Magistério da Igreja (20-21).  Além disso, também do exterior da Igreja vêem os gritos, queixas e argumentações polêmicas. Até mesmo após o recente caso da beatificação de João Paulo II, em que uma freira (Figura 2) argumentou ter sido curada de doença de Parkinson por intercessão dele (22).

As críticas referentes ao processo e a tentativa de por em dúvida a atuação dos médicos-peritos tiveram eco na imprensa mundial, o que levou a uma enérgica manifestação da Federação Internacional das Associações dos Médicos Católicos (FIAMC) (23).


4.2 Locais de peregrinação e curas extraordinárias


            Há ainda outras situações em que os médicos-peritos colaboram com a Igreja na difícil tarefa de manter a harmonia entre fé e ciências. É o caso de alguns santuários e locais de peregrinação, dos quais o mais conhecido exemplo é provavelmente o Santuário mariano de Lourdes. Todos os anos, desde 1848, acorre uma multidão de peregrinos até esta cidade francesa, entre os quais vários doentes que procuram obter cura para suas enfermidades (24).
            Especificamente no Santuário de Lourdes, onde os relatos de cura são numerosos, foi criado um comitê médico específico para a finalidade de avaliar pericialmente o caso (25). Atualmente, este comitê (“Bureau Médical”) está composto de 20 médicos, respeitados cada um na sua área de atuação. Ele foi criado em meados do século XX com a finalidade de dar credibilidade internacional aos casos e publica boletins periodicamente (26).  


5 Conclusão e considerações finais


            Após a exposição acima efetuada é possível chegar a algumas conclusões. Em primeiro lugar, fica evidenciado o grande esforço que o Magistério da Igreja tem envidado ao longo dos séculos para acompanhar o avanço das ciências, inclusive na área médico-pericial, com a finalidade de chegar a uma sã convivência entre fé e razão – ou fé e ciência – estabelecendo um diálogo criterioso em busca de soluções harmônicas. Este diálogo entre fé e razão acentuou-se nos últimos tempos em que a humanidade inteira tem atravessado períodos de grandes transformações culturais e experimentando a velocidade da revolução técnico-científica (27). Ponto culminante neste debate é o Concílio Vaticano II, através do qual, como visto, a Igreja coloca em franco debate estas questões desejosa de levar a cabo um processo que terminaria por compartilhar com o mundo inteiro a fé de todos os tempos expressa numa linguagem convincente para o homem moderno (28).
            Como exaustivamente reafirmado no corpo do artigo, os Papas, ao longo da história, trataram de organizar e reorganizar sempre os processos de beatificação e canonização, à luz dos conhecimentos científicos e teológicos de cada época, com a finalidade, também neste caso, de manter certa harmonia entre fé e razão. Na busca por mitigar os enganos sobre curas extraordinárias, a Igreja recorreu desde tempos remotos às ciências médicas, muito mais ainda nos séculos mais recentes, quando a própria medicina conheceu avanços como nunca antes e, por isso, mesmo, tornou-se capaz de contribuir na investigação pericial sempre com maior grau de confiabilidade e capacidade técnica (29).
            Passo decisivo na organização e aperfeiçoamento dos processos de reconhecimento de milagres e canonizações aconteceu com a criação oficial da Congregação para as Causas dos Santos. Porém, a forma de lidar e instruir os autos dos processos sofreu ajustes mesmo em épocas recentes, tendo inclusive recebido modificações durante o atual pontificado de Bento XVI, sempre tendo em conta o melhor ajuste técnico para uma decisão acertada. Atualmente, preside a Congregação para as Causas dos Santos o cardeal italiano Angelo Amato e a Consulta Médica, ou seja, o corpo médico-pericial é presidido pelo médico cardiologista Patrizio Polisca (30).
            A participação dos médicos peritos no reconhecimento das curas extraordinárias tem lugar não somente na sede da Congregação para as Causas dos Santos como também na fase diocesana de investigação, quando o bispo ou ordinário local nomeia uma junta médica para iniciar o processo de investigação (15).
            Não obstante o esforço da Santa Sé, os processos de beatificação e canonização não raramente sofrem críticas por parte da imprensa ou mesmo de fiéis católicos, dentre os quais até mesmo alguns médicos e teólogos.
            Por fim, deve-se ressaltar que os peritos médicos também tomam parte em outros processos de investigação de milagres que não aqueles que servirão de apoio às causas dos santos, como por exemplo, curas individuais em santuários e locais de peregrinação, dos quais o mais famoso internacionalmente é o santuário mariano de Lourdes, na França.
            Este trabalho pretendeu levar ao conhecimento dos médicos-peritos e a quem possa interessar a forma através da qual a Igreja católica recorreu e recorre ainda hoje ao auxílio das ciências médicas para assegurar a ocorrência de uma cura que não pode ser explicada pelos conhecimentos técnico-científicos hodiernos. Esta é mais uma faceta, nem sempre conhecida ou explorada, do imprescindível trabalho que os peritos médicos prestam à sociedade hoje e em todos os tempos. 
           



  

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