"Quem não conhece Deus, mesmo podendo ter muitas esperanças, no fundo está sem esperança, sem a grande esperança que sustenta toda a vida" (Spe Salvi - Bento XVI)

quarta-feira, 9 de maio de 2018

PREFÁCIO DO PAPA FRANCISCO AO LIVRO "LIBERTAR A LIBERDADE" QUE REÚNE TEXTOS DO PAPA EMÉRITO BENTO XVI


Segue o texto do PREFÁCIO ESCRITO PELO PAPA FRANCISCO para um livro (segundo de uma série de sete) que reúne textos do Papa emérito Bento XVI sobre fé e política: “Libertar a liberdade. Fé e política no terceiro milênio” (Editora Cantagalli). Será lançado dia 11 de maio no Senado Italiano, com a presença do secretário do Papa emérito, Georg Gänswein, o presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, o Bispo Dom Giampaolo Crepaldi e a presidenta do senado italiano, Maria Elisabetta Casellati.

O original está disponível no site VATICAN INSIDER.

Prefácio do Papa Francisco

A relação entre fé e política é um dos grandes temas que sempre estiveram no centro das atenções de Joseph Ratzinger/Bento XVI e atravessa todo seu caminho intelectual e humano: a experiência direta do totalitarismo nazista o levou, como jovem estudioso, a refletir sobre os limites da obediência ao Estado em favor da liberdade da obediência a Deus: “O Estado – escreve nesse sentido em um dos textos propostos – não é a totalidade da existência humana e não abarca toda a experiência humana. O homem e sua esperança vão mais além da realidade do Estado e mais além da ação política. Isto não vale só para um Estado que se chama Babilônia, mas para qualquer tipo de Estado. O Estado não é uma totalidade. Isto alivia o peso do homem político e lhe abre o caminho a uma política racional. O Estado romano era falso e anticristão precisamente porque queria ser o totum das possibilidades e das esperanças humanas. Assim pretende o que não pode; assim falsifica e empobrece o homem. Com sua mentira totalitária se torna demoníaco e tirânico”.
  
Posteriormente, também com estes fundamentos, ao lado de São João Paulo II, ele elabora e propõe uma visão cristã dos direitos humanos capaz de por em discussão em nível teórico e prático a pretensão totalitária do Estado marxista e da ideologia ateia sobre a qual se fundava.
  
Porque, para Ratzinger, o autêntico contraste entre o marxismo e o cristianismo não se dá, certamente, na atenção preferencial dos cristãos pelos pobres: “Devemos aprender – uma vez mais, não só a nível teórico, senão na forma de pensar e agir – que ao lado da presença real de Jesus na Igreja e no sacramento, existe outra presença real de Jesus nos pequenos, nos pisoteados deste mundo, nos últimos, nos quais Ele quer ser encontrado por nós”, escreveu Ratzinger nos anos setenta com uma profundidade teológica e com uma acessibilidade imediata que são próprias do pastor autêntico. E esse contraste não se dá tampouco, como ele sublinhou em meados dos anos oitenta, devido à falta no Magistério da Igreja do sentido de equidade e solidariedade; e, como consequência, “na denúncia do escândalo das evidentes desigualdades entre ricos e pobres – sejam desigualdades entre países ricos e países pobres ou entre classes sociais no mesmo território nacional – que já não é tolerável”.

O profundo contraste, nota Ratzinger, se dá, pelo contrário (e ainda antes que na pretensão marxista de colocar o céu na terra, a redenção do homem no “aqui”), na diferença abismal que subsiste na relação com a maneira como a redenção deve suceder: “A redenção se dá mediante a libertação de qualquer dependência, ou a única via que leva à libertação é a completa dependência do amor, dependência que seria a verdadeira liberdade?”.

E assim, com um salto de trinta anos, ele nos acompanha na compreensão de nosso presente, como atestam o imutável frescor e a vitalidade de seu pensamento. Hoje em dia, efetivamente e mais do que nunca, se torna à mesma tentação do rechaço de qualquer dependência de amor que não seja do amor do homem pelo próprio ego, pelo “eu e seus desejos”; e, consequentemente, o perigo da colonização das consciências por parte de uma ideologia que nega a certeza profunda segundo a qual o se humano existe como homem e mulher, aos quais foi assinalada a tarefa da transmissão da vida; essa ideologia que chega à produção planificada e racional de seres humanos e que – talvez por algum fim considerado “bom” – chega a considerar lógico e lícito cancelar o que já não se considera criado, doado, concebido e gerado, mas feito por nós mesmos.

Esses aparentes “direitos” humanos, que se orientam para a autodestruição do homem (e nos demonstra com força e eficácia Joseph Ratzinger) têm um único denominador comum que consiste em uma única, grande negação: a negação da dependência do amor, a negação de que o homem é criatura de Deus, feito amorosamente por Ele à Sua imagem e a quem o homem anela como a corça suspira pelas águas (Sl 41). Quando se nega esta dependência entre criatura e criador, esta relação de amor, se renuncia no fundo à verdadeira grandeza do homem, ao bastião de usa liberdade e de sua dignidade.

Assim, a defesa do homem e do humano contra as reduções ideológicas do poder passar na atualidade por estabelecer na obediência do homem a Deus um limite da obediência ao Estado. Aceitar este desafio, na verdadeira mudança de época que estamos vivendo, significa defender a família. No mais, já São João Paulo II havia compreendido muito bem o alcance da questão: chamado com razão “o Papa da família”, não por acaso sublinhava que “o porvir da humanidade passa através da família” (Familiaris consortio, 86). E, nessa linha, também eu insisti que “o bem da família é decisivo para o futuro do mundo e da Igreja” (Amoris laetitia, 31).

Por isso, estou particularmente feliz de poder introduzir este segundo volume dos textos escolhidos de Joseph Ratzinger sobre o tema fé e política. Que possa, junto com sua poderosa Opera omnia, ajudar-nos não só a compreender o nosso presente e a encontrar uma sólida orientação para o futuro, mas também ser verdadeira fonte de inspiração para uma ação política que, colocando a família, a solidariedade e a igualdade no centro de sua atenção e seus programas, olhe para o futuro verdadeiramente com clarividência.